pensamentos sobre drama, novo álbum de rodrigo amarante
Foram oito anos de espera para os fãs, e três pra mim, um fã um pouquinho mais jovem, digamos. Em abril de 2020, no incêndio da pandemia da covid-19, o jornal O Globo organizou uma série de lives formando uma espécie de festival online, o “TamoJunto”, e por meio disso, enfim ouvíamos novidades sobre Rodrigo Amarante.
Sou fã declarado de Los Hermanos, de Little Joy e do álbum Cavalo, o primeiro solo de Amarante, lançado em 2013. Mas quando vi o anúncio da tal live, eu não queria saber se ele tocaria as semi-clássicas dos álbuns Ventura, Bloco do Eu Sozinho ou do Little Joy, eu queria saber do que viria de novo por parte do meu artista brasileiro favorito.
Depois de ouvir tudo que havia disponível em versões de estúdio, por um bom tempo eu garimpei por novas músicas de Rodrigo Amarante pelo Youtube. Achei shows completos com músicas inéditas. Canções cujas versões, mesmo gravadas com menor qualidade, se tornaram minhas favoritas, superando os consagrados trabalhos anteriores dele. E desde então, eu esperava pelo bendito novo álbum, que talvez me trouxesse versões em maior qualidade dessas músicas já tão queridas. O álbum foi enfim anunciado, durante a própria live do festival, e um ano depois, atrasado por conta da pandemia, ele chegou. E é perfeito. Tudo que eu ouvi nas minhas pesquisas está ali, mas não da forma que eu imaginava.
Drama
O título do álbum, Drama, foi ideia da cantora Cornelia Murr, companheira de Amarante. É também o título da primeira faixa do álbum, uma experiência musical de ritmos e sons que já havia ditado o ótimo trailer do álbum.
Rodrigo, juntamente da irmã, a editora de filmes Marcela Amarante, vem construindo um repertório no audiovisual, fazendo disso uma empreitada que pode render mais frutos no futuro, até mesmo uma carreira paralela. Porém, tanto na faixa quanto na proposta audiovisual, um elemento se sobrepõe aos demais: as gargalhadas de auditório.
Muito me parece que Amarante está ciente de algumas observações que são feitas ao seu repertório desde a época do Los Hermanos, especialmente os voltados ao “pretensiosismo”, tanto dele quanto de Marcelo Camelo.
Dessa vez, apresentando um projeto que vai ainda mais além em nível de referências, Rodrigo se blinda. Brinca com risadas como quem pouco se leva a sério, como um artista que se senta em um restaurante e só espera desfrutar de uma refeição em paz. De quem faz o que quer, e nada mais.
Maré
A segunda faixa do álbum foi também o primeiro single a ser lançado. Nessa música, começamos a ver um dos elementos mais apontados pelos críticos na empreitada de Amarante: a inserção de camadas em produtos prontos, como um tempero extra na finalização de um prato. A música já havia sido apresentada em shows, inclusive no Brasil, e no álbum ganhou uma nova roupagem, além de mudanças nem tão sutis na letra.
Dentro do álbum, as mudanças foram extremamente positivas. Quando ouvi a nova versão pela primeira vez, imediatamente lembrei de uma entrevista agridoce dada pelo músico a Revista Trip, onde ele menciona a saudade de viajar em banda, numa referência ao tempo de Los Hermanos. Maré é a canção mais apaixonada do novo disco, mesmo não parecendo. É também a que mais se aproxima da estética de trabalhos como Bloco do Eu Sozinho, segundo disco do Los Hermanos. É uma ligeira fuga da imagem de solidão e exílio, tão forte em Cavalo e retomada nas canções seguintes.
“Sorte é não querer mais do que viver,
Sorte é ter amor pra dar”.
Nem preciso ir muito longe na análise.
Tango
A terceira faixa, também lançada como single, já havia sido apresentada por Amarante ao vivo, e uma gravação está disponível no Youtube, contendo essas e outras músicas sobre as quais ainda irei comentar:
Apresentada em um clipe extremamente sensível e aconchegante, Tango é uma música de paixão, uma declaração de amor em uma balada leve e deliciosa de ouvir. É talvez a faixa mais “fácil” do álbum, a mais suave de todas as novidades apresentadas, e uma das que possui maior potencial de sucesso nos palcos.
Tara
É impossível não sentir o clima de MPB, ou até de final de filme/novela ouvindo os primeiros segundos de Tara, quarta faixa do álbum. Mas estamos diante de um profundo lamento lírico.
“Nosso amor que era carne, cresceu fraco do osso.”
Inicialmente apresentada como “Carta”, a faixa apresenta muito bem o potencial de Amarante, em algo que poderia ter sido escrito por qualquer mestre nacional dos anos 60 e 70. É a volta para o elemento solitário tão presente no álbum anterior, é a volta a um passado da música nacional, mas é um passo adiante para o compositor, em uma de suas peças mais refinadas até aqui. Outras versões da música estão disponíveis por aí, uma apresentada ao vivo no festival Le Guess Who, e outra durante a já citada live “TamoJunto”.
I Can’t Wait
A sexta faixa é a mais intrigante de todas pra quem acompanha Amarante há algum tempo. A primeiríssima versão da música foi apresentada em alguns shows em 2015.
A melodia, ainda que bem sintetizada e alterada na versão lançada agora no álbum, e também como single, é inconfundível. Mas a letra da nova versão é o extremo oposto da apresentada anteriormente. Clique aqui para conferir.
A primeira versão traz um trecho em específico que chama muito a atenção:
“On my own, I better be”
A tradução seria para algo como “é melhor eu estar sozinho”, o que é bem diferente da proposta da nova música, que traz o trecho de grande destaque:
Our Hearts beats as one.
That old dream of ours.
To be free is to belong.
“Nossos corações batem como um só, naquele nosso antigo sonho, liberdade é fazer parte”. Amarante partiu de um canção que explorava uma mágoa, algo mais próximo do que vimos em Tara (ou “Carta”) e o resultado foi um hino de sintonia, comunidade e vínculo entre os seres. Uma obra-prima que representa a transição completa do músico, que nessa faixa preferiu abrir mão de escrever sobre as dores do amor, tal qual o tempo de Los Hermanos, e que agora assume o papel mais humanista e político, bem como os nossos tempos exigem.
O trecho principal citado acima, veio de um haicai pesquisado pelo músico. A primeira vez em que ouvi essa versão, no caso, durante a live em 2020, dois pontos me chamaram a atenção: o primeiro foi a melodia, que lembrava uma outra canção jamais lançada oficialmente por Amarante, intitulada Diamond Eyes (ou Idle Eyes), e o segundo ponto foi o trecho “That Old Dream of Ours”, que era, adivinha só, o título de uma belíssima música lançada em uma coletânea organizada por Devendra Banhart em 2015, e que contava com diversos músicos, incluindo a ótima cantora Vashti Bunyan.
A segunda música, That Old Dream of Ours, ainda foi apresentada com outro título em alguns shows: Noster Nostri, que é o título do haicai que inspirou I Can’t Wait. Seu processo criativo, trocando conteúdos entre uma canção e outra, e apresentando-as com títulos diferentes, ainda acrescentam mais um elemento no já encorpado repertório do músico: enigma.
Mas essas músicas que ouvi por tanto tempo nas minhas pesquisas foram descartadas? A primeira, Diamond Eyes, de fato não entrou no álbum, e sua primeira versão foi lançada em 2011, antes mesmo da publicação do primeiro disco solo de Rodrigo. Já That Old Dream of Ours reapareceu como a última faixa do álbum, agora intitulada The End, reescrita e reimaginada.
O álbum conta ainda com as faixas Tão, Sky Beneath (também vista no show completo publicado acima) e Eu Com Você, além do grande destaque do álbum…
Um Milhão
A mais forte e representativa letra escrita por Rodrigo Amarante já havia sido apresentada em shows solo e até pelo conjunto do Los Hermanos, durante uma turnê realizada em 2012. Ouça aqui uma versão.
A música, ao contrário do que se pensou a princípio, não fazia parte do repertório do Los Hermanos. E nem poderia. Tamanho trabalho é um protesto particular de Rodrigo, em uma poderosa letra que explora o domínio e a expansão territorial dos detentores do capital, do “1%”.
Havia pouca esperança de uma versão de estúdio dessa música, visto que, assim como Diamond Eyes, ela já havia sido apresentada antes do primeiro álbum de Amarante e não entrado no mesmo. A inclusão da música na setlist da live realizada em abril de 2020 reacendeu as esperanças, e a posição 10 em Drama ficou para ela.
Pra cada um com um milhão.
Um milhão sem um sequer.
Com 11 faixas no total, Drama definitivamente saciou as expectativas dos fãs de Rodrigo Amarante, mas não necessariamente aos fãs de Los Hermanos. Isso inclusive já é um repeteco das críticas ao primeiro álbum, Cavalo. Ou seja, é hora de admitirmos que estamos diante de uma personalidade nova e até superior do músico. Até surpreende pensar que seu auge não estava nas já excelentes composições do tempo com a banda carioca, ligeiramente superiores as do parceiro Marcelo Camelo.
Ainda ficaram no caminho, sem entrar no álbum, canções como Heads or Tails e Wood and Graphite, que também podem ser encontradas em gravações ao vivo Youtube afora. Ou talvez elas até estejam no álbum, dissolvidas entre as outras faixas, cujas referências vamos perceber só na vigésima vez ouvindo o disco. Pra mim, isso não vai demorar a chegar.
Se não chegar, então que essas canções, de forma semelhante ao processo feito com Um Milhão, apareçam num terceiro álbum. E se Rodrigo Amarante precisar de outros oito anos pra nos entregar outra obra desse nível, abraçaremos esse drama.