sábados
“Onde está o maldito valete de copas?” era o que o velho vinha se perguntando há dois minutos, ou seriam doze? Tanto faz. Os tempos em que existia um significado para os sábados à noite haviam passado. O que realmente importava? Ali estava o velho, sentado à velha mesa, onde empilhava as cartas para os repetidos jogos de paciência, que antes recebia os amigos para uma partida de canastra, amigos estes, que não tiveram a mesma sorte de viver até tão longe, ou seria ele o azarado?
Lembrava-se do homem que se sentava na primeira cadeira à direita, o velho Goulart, e de suas piadas repetitivas e de pouca graça, mas que em noites como aquela faziam todos os demais rirem como se estivessem à frente do próprio Charles Chaplin. A bebida ajudava nestas situações, o velho mal se lembrava do sabor, mas lembrava de como o fazia se sentir no domingo de manhã, após noites como aquela. “É espanhola”, dizia Antonieta, que sempre fornecia a bebida, a velha “Toninha” sentava-se ao lado de Goulart, e nunca tinha um humor definido; alguns sábados estava animada e quase dançando pela mobília, em outros discutia e reclamava dos problemas enquanto escondia as cartas embaixo da manga, ninguém se importava.
Pobre de Waldir, o marido da bipolar Toninha, que se aquietava quando a mesma levantava o tom da voz, e se fazia invisível se preciso. Waldir se sentava na primeira cadeira do lado esquerdo. Ao seu lado estava a solteirona Odivina, que se dizia santa e virgem, mas em que olhares suspeitos com o velho Goulart fazia da própria reputação questionável. Ao outro lado da mesa, estava a minha doce Amélia, que fazia questão de jogar limpo e de manter a conversa sempre viva e amigável, o que diziam sobre ela, é que se em guerra estivesse, lutaria por dois lados e com armas de brinquedo. O velho se lembrava do caderno de apostas e de vencedores. Toda noite o vencedor do jogo o levava pra casa, como o troféu, ideia de Toninha, a maior vencedora, que mantinha o caderno por mais tempo que qualquer outro. As artimanhas de Antonieta eram batidas, e muito mal contadas, mas para ela, era sempre plausível a história que contava quando flagrada com cartas na manga, “Estava jogando paciência, e esqueci as cartas por aqui”, tal desculpa não fazia o menor sentido, mas a velha precisava vencer, ou o prejudicado seria o pequeno Waldir.
O caderno foi usado por muitos anos, Amélia era quem anotava o vencedor da noite, apesar de seu nome poucas vezes ter aparecido por lá, o conforto e a conversa eram mais importantes. Odivina começava a fazer fofocas sobre o mal comportamento das vizinhas, algo intolerável a seus olhos, todos prestavam atenção e acenavam concordando com o que dizia, por mais absurda que a história fosse. O velho Goulart então surgia do nada com uma nova, que não era nova, piada. Nunca contou quantas noites foram gastas jogando, mas pela quantidade de vezes que o velho ouvira a piada do papagaio, percebia que se tratavam de muitas. O velho recolhia as cartas quando parou para olhar a bandeja usada para guardar copos sobre a mesa.
De início haviam seis deles, e apenas um tinha restado. Lembrava-se das noites em que o velho Goulart passava do limite na bebida, o que acontecia muito. Tinha certeza que Goulart havia quebrado pelo menos três dos copos. Se lembrava de um outro, que Toninha havia quebrado na cabeça do pequeno Waldir após perder o jogo da noite. Pobre Waldir. Os cacos eram o que restavam, e sempre que um ia ao chão, lá estava Amélia, já com a vassoura pronta para varrer os cacos. Odivina dizia “Tenho um jogo de copos lindos, que não estou usando, uma hora dessas eu os trarei aqui”, ela nunca os trouxe.
O velho então olhou para o relógio, já era hora de dormir, pelo menos agora era, não havia mais canastra a ser jogada, só a saudade de cada rodada. O velho então foi para cama, rezou e após uns instantes, dormiu. Não se sabe se Deus existe, e se ele existe, como envia suas mensagens. Será que pode assumir a forma de um camundongo que anda pela mobília da casa? Só se sabe que, ao meio da noite, um deles esteve sobre a mesa, passou por cima do caderno, e ao fim, só se ouviu barulho de vidro espatifando. O último copo se quebrou.